sexta-feira, 30 de março de 2012

Alegoria para Helena


Uma língua despindo as palavras açoitou a boca e fez dos lábios opostos refúgio protegido por mordidas salientes, selantes, salivantes...

Ela sonhou mais uma vez.
E desejou a vida como desejava a língua que sonhara: Despudorada, sem receio de cativar o que lhe interessava.
Mas era sonho, repetitivo e inquietante.
Acordava em um corpo alheio, desatenta ao chão que costumava pisar.
Esquecera do seu nome, nome dado e batizado pela tradição católica apostólica romana.
Acordar tornou-se um ato de regressão. Fardo sustentado todo santo dia, todo dia de santo.
Mas se ela fosse ela? E se o futuro guardasse surpresas avassaladoras?
Abria a geladeira sem esperança de banquete. Suco da noite anterior, bebia o passado com gosto, lambuzava-se disso.
Ela?
Mulher independente, dona do próprio nariz, cabelos, pernas.
Saía para o trabalho com sensações comuns, preocupações comuns, normalizada, normatizada, numa alegoria descomunal.
Cativante.
Sentia que poderia ser mais, mas ser é algo tão difícil, vai além da redoma, ficaria desprotegida.
Melhor sonhar, assimilar o papel e ser intérprete de si.
É.
Mas a língua insiste.
E a vida também.

(José Avelino)

domingo, 11 de março de 2012

É grave doutor?


Quem sofre de viver sempre acha açoites para afastar de si a falsa patologia. É na autoflagelação cotidiana que se evidencia na pele marcas de uma expectativa obvia: Sentir o inesperado tão esperado.
Acha-se então que a qualquer momento sentimentos inesperados aparecerão e abraçarão esse corpo flagelado de pouco viver. Como se aparentemente tudo estivesse no ar, como fuligem de fumaça que gruda aos poucos nas paredes dos prédios. Dá uma vontade imensa de aprisionar todo ar nos pulmões afim de filtrar-lo para, quem sabe, impregnar algo de bom nos alvéolos.
Mas cansa respirar isso tudo.
E quando se pensava que viver era a causa de tanta angústia, o diagnóstico aponta para problemas no sistema respiratório.

(José Avelino)