Uma língua despindo as palavras açoitou a boca e fez dos lábios opostos refúgio protegido por mordidas salientes, selantes, salivantes...
Ela sonhou mais uma vez.
E desejou a vida como desejava a língua que sonhara: Despudorada, sem receio de cativar o que lhe interessava.
Mas era sonho, repetitivo e inquietante.
Acordava em um corpo alheio, desatenta ao chão que costumava pisar.
Esquecera do seu nome, nome dado e batizado pela tradição católica apostólica romana.
Acordar tornou-se um ato de regressão. Fardo sustentado todo santo dia, todo dia de santo.
Mas se ela fosse ela? E se o futuro guardasse surpresas avassaladoras?
Abria a geladeira sem esperança de banquete. Suco da noite anterior, bebia o passado com gosto, lambuzava-se disso.
Ela?
Mulher independente, dona do próprio nariz, cabelos, pernas.
Saía para o trabalho com sensações comuns, preocupações comuns, normalizada, normatizada, numa alegoria descomunal.
Cativante.
Sentia que poderia ser mais, mas ser é algo tão difícil, vai além da redoma, ficaria desprotegida.
Melhor sonhar, assimilar o papel e ser intérprete de si.
É.
Mas a língua insiste.
E a vida também.
(José Avelino)